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Gatos e mulheres grávidas: verdades e mitos desta relação

Patrícia[1], uma advogada de 28 anos, adotou Lola quando foi morar com o noivo. A gatinha, sem raça definida, era seu xodó: além da beleza exótica com todos aqueles pelos rajados em tons dourado e preto, era um animal dócil e comportado. Sem dificuldades, Patrícia seguiu todas as recomendações para os cuidados de Lola, como as vacinas, a desvermifugação, castração etc.


Entretanto, passados alguns anos, Patrícia engravidou pela primeira vez. Junto com o bebê vieram muitas dúvidas sobre a saúde do filho, entre elas, a presença de Lola na casa. Todos nós, amigos, incluindo seu irmão veterinário, tentamos tranquilizá-la, alegando que alguns cuidados extras seriam mais que suficientes, já que Lola era saudável e não saía de casa. Não teve jeito. O nível de rejeição à gata chegou a tal extremo, que Patrícia deu Lola a uma pessoa que passava na rua.


Foi um choque para todos nós! Sem dúvidas, o maior problema de Patrícia foi o medo e, depois, a covardia. Pois ela tinha informação, porém, tomou a decisão inadequada. Mas quantas mulheres conhecem as causas e os possíveis riscos de contrair a “doença do gato”? Quantas delas tomam ou são incentivadas a tomar decisões pautadas em achismos?


Considero este tema de grande responsabilidade. Não apenas porque se trata de uma questão da saúde humana. Mas porque, ao longo de uma jornada de amigas engravidando, descobri que o medo nasce da desinformação, criando seus mitos e suas irresponsabilidades. O assunto não é simples, entretanto, precisamos discuti-lo para observar que a relação entre gravidez e gatos é mais complexa do que parece.



Toxoplasmose: o que você precisa saber


Transmissível a vários animais (incluindo os seres humanos), a toxoplasmose é uma doença parasitário-infecciosa causada pelo protozoário Toxoplasma gondii – um parasita pequenino, que a gente só enxerga com a ajuda de um microscópio.


Mais frequente do que se pensa, a doença é comum e ocorre em diversas partes do mundo (Canadá, Inglaterra, Índia etc), inclusive no Brasil - onde ela é endêmica (constante) -, embora sua manifestação sintomática seja rara. Isto significa que o infectado manifestará a doença em casos muito específicos, relacionados à defesa imunológica reduzida: pessoas transplantadas, portadores de HIV e doenças crônicas - situações em que a toxoplasmose poderá ser fatal.


No caso de gestantes, apesar de ser incomum a doença congênita, pode causar sequelas graves ou a morte do feto em idade prematura. Infecções em estágios mais tardios da gravidez podem ocasionar hidrocefalia, calcificações cerebrais, pneumonia, entre outras enfermidades. De todas as formas, a incidência de infecções por Toxoplasma gondii aumenta com a idade, sendo mais comuns em adultos do que em jovens, ocasionando sintomas, em indivíduos sadios, que mais se assemelham a uma gripe.


Com relação à endemia brasileira, em 2009, um artigo científico[2] apontou a alta incidência da infecção no país, demonstrando que estamos longe de vencer esta batalha. Nesse panorama, os felinos são injustamente considerados os vilões da toxoplasmose. Mas uma publicação da Organização Panamericana da Saúde (OPS)[3] relatou que a doença não é exclusiva dos felinos. Ela já foi comprovada em mais de 200 espécies de vertebrados, incluindo aves, gados, porcos, ovelhas, cavalos, cachorros, roedores, etc.


Mas então, por que a implicância com os gatos, se outros animais também podem transmitir a doença? Na perspectiva epidemiológica (estudo das causas da doença, sintomas, etc), é nos gatos que o Toxoplasma gondii se instala definitivamente para se reproduzir sexuadamente e perpetuar a doença. Massssss, muito cuidado aqui: hospedar definitivamente o parasita não significa que apenas o gato poderá transmitir a toxoplasmose. O contágio da doença está além dos felinos, e muito mais relacionado a questões culturais, educacionais e socioeconômicas dos humanos, sendo, portanto, um complexo tema de saúde pública.



Para além das fezes...do gato!


Todo o preconceito e ações contra os bichanos advêm de muita desinformação e interpretação equivocada sobre como funciona a dinâmica da toxoplasmose. Portanto, o ponto de partida é compreender o papel dos gatos como hospedeiro definitivo do Toxoplasma gondii.


Para facilitar, pense que o parasita precisa de um peludinho-bigodudo para ativar seu estágio de maturação, e logo, disseminar novas possibilidades de contágio. A esta altura, você deve estar se perguntando “como raios um ronrom fofo pode se infectar com um parasita tão maligno?” Pois bem, a natureza é sábia, e isso pode se dar de várias formas.


Geralmente, começa com a ingestão de carne crua, que pode ocorrer em situações como: (1) você ou alguém premia seu/um gato com um pedaço de carne crua (boi, porco, ave etc); (2) um gato (que pode ser o seu) sai à rua e come um rato, um pássaro ou pega do lixo um pedaço de carne qualquer. O detalhe importante para estas duas situações é que o gato só contrairá a doença se a carne estiver contaminada com o Toxoplasma gondii. SIM! A doença não brota no gato pelo ar, existe uma fonte de contágio.


Como já vimos, em diversas partes do mundo, existem mais de 200 espécies identificadas que podem ter a toxoplasmose. Então, se os planetas se alinharem e der o azar de um gato comer um pedaço de carne contaminado, ele se infectará e a doença continuará se perpetuando. E é aí que entram as fezes do gato: uma vez que o parasita se reproduz no intestino do bichano, ele sai pelas fezes, prontinho para fazer uma nova vítima. E o interessante é que o gato, na maioria dos casos, só se contamina uma única vez na vida.


Logo, eliminará as fezes infectantes uma única vez na vida também! Claro que podem existir situações imunológicas que podem dar as condições para que ele se contagie novamente, mas isso não é muito comum.



Agora, vem a outra parte da história: as fezes infectantes no ambiente. Em resumo, essas fezes podem ser eliminadas pelos gatos contaminados em vários locais, desde uma horta, bebedouros de água para outros animais, jardim, currais, ruas ou dentro das casas nas caixas de areia, isto é, qualquer lugar em que o gatinho se sinta à vontade.


Então, o contágio em outros animais pode ocorrer de múltiplas formas, considerando os inúmeros locais cujas fezes foram eliminadas: pela ingestão de pasto ou água contaminada, ingestão de animais mortos com a toxoplasmose e, o que é mais difícil, a ingestão das fezes infectantes do gato. Portanto, se você não come carne crua ou mal passada, não ingere carne ou embutidos de animais exóticos, sua casa não tem ratos, baratas e afins, lava bem sua salada e frutas e seu gato é bem cuidado, isto é, vacinado, come apenas alimento balanceado, não vai à rua etc, a possibilidade de ele contrair toxoplasmose é praticamente nula.


Mas, pensando em todas essas condições, imagine que seu gato tem toxoplasmose. Ainda assim, as chances de você contrair a doença só aumentariam se você ingerisse resíduos do cocô de seu gato no dia em que as fezes estivessem infectantes. Ou, que as fezes ficassem expostas na caixinha de areia a ponto de você correr o risco de aspirar o pó do cocô junto com os ovos do parasita... Situações de baixa probabilidade, não é mesmo?!


É claro que existem condições humanas que podem facilitar a propagação da doença, sejam elas culturais, educacionais ou socioeconômicos. Entre elas, está o consumo de alimentos que podem ser desde uma carne crua ou mal passada, embutidos, queijos e outro tipo de alimento que não passou por uma inspeção sanitária. A manipulação de frutas, verduras e hortaliças também merecem muita atenção.


Com isso, você pode observar que a higiene, a adequação e estrutura do local de produção ou manipulação dos alimentos, assim como o saneamento básico e o acesso à informação são fundamentais para evitar o contágio da toxoplasmose, ressaltando que esses cuidados não são exclusivos ao ambiente rural. Muitos desses produtos e alimentos chegam ao consumidor das grandes capitais, os quais exigem os mesmos cuidados e atenção.



Gravidez e gatos: a responsabilidade é dos humanos


As pesquisas científicas da área médica e veterinária apontam unanimemente que o principal meio de contágio da toxoplasmose em humanos não são os gatos, mas sim, a carne que o humano consume. Como comentamos, existem várias condições em que ocorre o contágio, e que não estão diretamente relacionadas aos felinos.



Uma mulher, assim como qualquer humano que já teve toxoplasmose, funciona como o gato: contrai a doença uma única vez. Se ela já teve a infecção e decide engravidar, não haverá qualquer risco a ela ou ao feto, salvo se ela tiver uma doença grave que comprometa seu sistema imunológico.


O grande problema é se ela contrair o Toxoplasma gondii pela primeira vez quando estiver grávida. Por isso, durante o pré-natal são realizados alguns exames para detectar a presença sorológica do parasita. Nesses exames, é possível identificar se a infecção é recente ou não. No meu caso**, sou positiva para toxoplasmose, e o exame constou que meu contato com o parasita não é recente.


Na época que soube, nunca havia tido um gato, mas havia me aventurado como mochileira pela América Latina e, irresponsavelmente, comi carnes exóticas que não tinham qualquer tipo de inspeção sanitária. Possivelmente, contraí a doença na viagem ou comendo uma salada mal lavada dentro de um lanche no meu bairro. Ou talvez, foi aquela fruta lavada às pressas na ida ao trabalho. Enfim, jamais saberei.


A única certeza que tenho é que não contraí de meus dois gatos, os quais fizeram os exames sorológicos, dando resultado negativo. Eu ainda não tenho filhos, mas tenho a tranquilidade de saber que posso engravidar e ser mãe sem riscos.


Acho que nunca é demais destacar que se você decidiu ter um gato, é sua responsabilidade protegê-lo. A toxoplasmose não se pega no ar: a infecção em gatos se dá por negligência. Então, cuide do bichano! Dê apenas alimento balanceado, castre-o, coloque telas nos locais por onde ele possa sair, evite que ele tenha contato com os gatos de rua.


Inclusive, os gatinhos que moram nas ruas também são consequência da irresponsabilidade humana. E saiba que os gatos não representam riscos à gravidez. Ao contrário, ele poderá ser um grande parceiro nesta linda experiência, alegrando a gestação e a vida da criança que está por nascer.




[1] Nome fictício para proteger a fonte.


[2] Artigo “Toxoplasmose animal no Brasil”, pela revista Acta Scientiae Veterinariae.


[3] Título em espanhol “Zoonosis y enfermedades transmisibles comunes al hombre y a los animales:parasitoses” (edição de 2003).


** Além de jornalista, a autora do texto também é licenciada em Ciências Biológicas.


Fotos: cats.apea-expo.com / /theconversation.com / /blog.coioftalmologia.com.br

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